20 de dez. de 2012

Qual a linha demarcatória é entre neoliberalismo e antineoliberalismo ?


“A luta essencial é entre mercado e direitos. A gente quer tirar do
mercado e colocar na esfera dos direitos e eles querem mercantilizar.
A linha demarcatória é entre neoliberalismo e antineoliberalismo”,
define o sociólogo Emir Sader, quando questionado sobre o que é ser de
esquerda nos dias de hoje.

Sader esteve em Curitiba para o lançamento de seu livro As Armas da
Crítica – Antologia do Pensamento de Esquerda (Editora Boitempo, ao
lado de Ivana Jinkings). Em coletiva cedida à imprensa sindical e de
esquerda, organizada pelo sindicato de professores estaduais
(APP-Sindicato), o que era para ser uma conversa pontual sobre um
lançamento tornou-se uma reflexão sobre a crise econômica e a disputa
em torno da manutenção do modelo neoliberal, por um lado, e as
tentativas populares de romper essa hegemonia; o que passa, de acordo
com Sader, pela questão de os movimentos sociais retornarem à disputa
na esfera política.

Brasil de Fato – Qual caracterização o senhor faz do atual momento da
crise mundial?

Emir Sader – É inerente ao capitalismo a crise. Como Marx reconheceu
no próprio Manifesto Comunista, o capitalismo tem uma extraordinária
capacidade de transformação da realidade, mas não distribui renda para
consumir o que produz. Então, periodicamente o Capital tem crises, que
alguns chamam de superprodução e outros subconsumo. A produção cresce
e falta consumo, então o paradoxo é que sobram mercadorias nas
estantes. Ao invés de distribuir renda para consumir, a crise manda
embora trabalhadores e aumenta-se mais ainda a crise. Só que o
capitalismo achava que o mercado recompõe isso. Na crise, as empresas
que eles consideram fragilizadas, digamos, quebram e o capitalismo
retoma seu ciclo de crescimento, num patamar mais baixo, mas mais
saudável. Desta vez, não está acontecendo isso. Porque na fase
neoliberal do capitalismo, o que é hegemônico é a especulação e não a
produção.

Como se dá este embate no campo da política? A impressão é que, na
opinião pública, se polariza entre alternativas neoliberais e o
resgate do keynesianismo.

O grande diagnóstico dos dirigentes capitalistas quando terminou o
ciclo expansivo econômico anterior foi o de que a economia deixou de
crescer porque havia muita regulamentação e ‘muito Estado’. Então, é
preciso liberar a livre circulação do Capital, tirar as travas para
que circule. A grande norma passa a ser a desregulamentação, o
livre-comércio. Ao fazer isso, não vem um ciclo produtivo e expansivo.
Porque o Capital não é feito para produzir, mas para acumular, se ele
consegue isso na acumulação é para lá que ele vai. Então, em escala
mundial, há uma brutal transferência de capitais do setor produtivo
para o especulativo. Hoje, mais de 90% das trocas econômicas no mundo
não são compra e venda de bens, são basicamente compra e venda de
papéis.

Ele [sistema capitalista] está numa fase particular, diferenciada. O
neoliberalismo não teve um ciclo produtivo porque na verdade canalizou
recursos para a especulação. A crise explode diretamente no sistema
financeiro, bancário. E a hegemonia de ideias é neoliberal. Estão
dando soluções neoliberais para a crise na Europa, estão jogando
álcool no fogo. Tanto que a Dilma jogou isso na cara da Angela Merkel:
cortando [direitos trabalhistas, previdenciários] só se leva a mais
recessão e desemprego. Essa é a interpretação dominante.

A outra [solução] é a da reativação keneysiana, um pouco o que a
América do Sul está fazendo. Algo óbvio. Na crise se investe mais em
políticas sociais, distribui a renda para aumentar a demanda. Como
fizemos em 2008. O que tem uma solução, do ponto de vista imediato,
anticíclica, funciona relativamente. Tanto que a América do Sul é um
polo de desenvolvimento ainda. Falta-nos a demanda deles, mas em
outras circunstâncias a crise seria avassaladora. Já existe uma
multipolaridade econômica mundial, pela integração regional, pela
relação com a China, e também pelo mercado interno de consumo. A visão
crítica disso é que é uma solução defensiva em relação à crise.

Se você não muda estruturas econômicas de poder, isso tem limites.
Nosso continente foi vítima das transformações mundiais negativas,
como a crise da dívida, ditaduras militares, governos neoliberais, e
que desarticularam a estrutura industrial, abriram aceleradamente a
economia, enfraqueceram o Estado. Então temos coisas paradoxais: os
produtos primários agrícolas e energéticos são prioridade na
exportação do comércio exterior, então exportamos soja e fazemos
política social. Melhor assim, mas de qualquer maneira é uma soja
ligada ao agronegócio. Então, temos limitações estruturais, porque a
estrutura mundial ainda é hegemonizada pelo neoliberalismo. Só tem
saída com a integração regional.

Houve o crescimento de renda nos governos Lula e Dilma, mas isso não
parece interferir na consciência de classe. O senhor poderia comentar
esse processo?

Essa é a maior disputa no mundo hoje. Os EUA são decadentes como
potência militar, política e econômica, mas a maior força deles é a
força ideológica. O modo de vida estadunidense é a mercadoria mais
forte que eles têm, que penetra na China, penetra na periferia dos
pobres, são valores determinantes, que ninguém compete com eles. No
Brasil, não se está gerando uma nova forma de sociabilidade,
correspondente à democratização econômica e social. Isso não está
sendo acompanhado de valores. Hoje o risco não é tanto o consumismo,
mas quem é que influencia os processos mesmo eleitorais? É a mídia e
são as igrejas evangélicas. O movimento popular está muito fragilizado
no seu processo de mobilização e também de difusão de ideias. São
Paulo foi pega desprevenida neste sentido. Vivemos três ditaduras que
são os obstáculos maiores: a ditadura do dinheiro, que é o capital
financeiro, ditadura da terra, que é o agronegócio, e a ditadura da
palavra, que é o monopólio da mídia, o que dificulta essa criação de
consciência nova.

E qual o papel dos sindicatos, cuja atuação parece muito restrita aos
seus interesses econômicos?

Difícil porque, nas grandes transformações do mundo, os trabalhadores
foram vítimas especiais, não só na esfera produtiva, nas políticas de
flexibilização laboral, que enfraquece a base dos sindicatos, mas o
próprio mundo do trabalho ficou invisibilizado – parece que ninguém
mais trabalha. A jornada hoje não é de oito, mas de doze horas. Esse é
o cotidiano das pessoas, que não está em lugar nenhum. Não tivemos
muitas gerações de trabalhadores a ponto de gerar uma cultura operária
no país, nem sequer na base, tampouco na literatura. São poucas
coisas. No mundo rural sim. Então, nas novelas da Globo, que criam o
imaginário nacional, o trabalhador não existe. Então, o que ocupa as
pessoas o tempo todo, que é o trabalho alienado, não aparece, não está
em lugar nenhum. Não está em editoria de jornal.

Quais são os espaços para essa disputa ideológica?

Mesmo sem financiamento público de campanha, o movimento popular
deveria eleger sua bancada no Congresso. Sei que não é fácil. Olhamos
o Congresso, há retrocessos ou se bloqueia avanços. O agronegócio tem
uma bancada fenomenal, e apenas dois representantes de trabalhadores
rurais. Quantos representantes os educadores têm no Congresso? Se tem,
nem sequer atuam como bancada. Já de donos de escolas privadas está
cheio.

Hoje, uma estratégia insurrecional não é viável. A correlação de
forças mundial mudou, basta ver a situação de impasse na Colômbia, a
América Central se reciclou. Se os zapatistas e o MST militarizassem
sua luta seriam massacrados. Então, [a luta] é pela democratização do
Estado. É preciso penetrar no Estado, não de qualquer modo. O
parlamento é um lugar não só para ter líderes políticos e sindicais.
Reclamamos, com razão, que o governo nem colocou a lei de
regulamentação da mídia em votação, mas você acha que neste Congresso,
formado por donos de meios de comunicação, isso vai passar?

Como o senhor define o campo da esquerda hoje?

O capitalismo assumiu a roupa neoliberal. Veio de um modelo
keynesiano, de bem-estar social, para um modelo liberal de mercado.
Essa é a linha divisória. Ser de esquerda hoje, moderadamente ou
radicalmente, é ser antineoliberal. A luta essencial é entre mercado e
direitos. A gente quer tirar do mercado e colocar na esfera do direito
e eles querem mercantilizar. A linha demarcatória é neoliberalismo e
antineoliberalismo. Há movimentos que são gritos desesperados que não
encontram espaço na esfera política. Agora, diferente é o movimento
dos estudantes no Chile, que tem organicidade com os sindicatos, fazem
greve geral e levaram à quebra de legitimidade do governo Piñera.

Seria possível estratégias combinadas entre movimentos, partidos e governos?

A América Latina teve governos neoliberais na sua versão mais radical.
Na década de 1990 tivemos um período de resistência contra essa
hegemonia que era tão forte. Os movimentos sociais foram determinantes
nessa época. Depois, surgiram governos alternativos. Era a hora de
passar da resistência à disputa de hegemonia. Na época, a hegemonia
dominante no Fórum Social Mundial era a das ONGs, tanto assim que se
teorizou e os movimentos sociais entraram nessa sobre a ‘autonomia dos
movimentos sociais’. Autonomia em relação a quê? A gente falava antes
de maneira ampla em autonomia em relação à burguesia e etc... Agora,
autonomia em relação à política? A ONG sim, nasceu como sociedade
civil conquistada. Os movimentos sociais entrarem nessa foi uma
loucura. O movimento piquetero acabou na Argentina. Os zapatistas
buscaram emancipar Chiapas, independente da luta política no México,
são contra até o PRD e as soluções moderadas, em nome da ‘autonomia
dos movimentos sociais’. Isso é algo pré-gramsciano. É não disputar a
hegemonia. Então, foi fundamental os movimentos bolivianos se
reunirem. Derrubaram cinco governos na Bolívia, criaram um partido
para disputar a presidência, dando um salto de qualidade. Quem está,
mal ou bem, construindo um outro mundo possível são os governos
latino-americanos. O FSM devia ser o lugar onde os governos com os
movimentos sociais sejam os pontos centrais dessa alternativa.
Fonte: Brasil de Fato

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